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“Hoje, o papel do professor, assume uma importância ainda maior, já que
passa a criar e mediar processos de aprendizagem, promovendo situações
desafiadoras e investigativas, que despertem nos alunos o interesse e o
prazer pelo conhecimento. Os alunos precisam ser expostos a atividades
significativas, integradoras e desafiadoras, que gerem interesse,
estimulem a curiosidade e possibilitem ricas oportunidades de
aprendizagem. É necessário implementar nas salas de aula de matemática
um ambiente de pesquisa, participação, construção de conhecimentos,
descobertas e reflexão. Para que isso ocorra, precisamos dispor de
diferentes recursos, que vão muito além do giz e do livro didático. É
cada vez mais difícil pensar em uma escola atual em que as novas
tecnologias de informação não estejam presentes. Incorporar diferentes
recursos tecnológicos ao cotidiano da escola não pode mais ser
considerado como algo para o futuro. Eles precisam ser imediatamente
inseridos, de forma efetiva, nos diversos espaços escolares e, em
especial, nas salas de aula de matemática.” ... (Profa. Katia Regina
Ashton Nunes / Revista Pátio, Ano 4, Nº 13, Jun/Ago 2012, Pág. 25)
A matemática além dos números
Gérard Vergnaud
Ensinar e aprender matemática é sempre um desafio para professores e
alunos, principalmente no ensino médio. Essa é a opinião de Gérard Vergnaud,
matemático, filósofo e psicólogo francês, diretor emérito de estudos do
Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), em Paris. Aluno de Jean
Piaget, Vergnaud dedicou-se, ao contrário de seu mestre, aos aspectos práticos
do ensino — a didática. Sua descoberta mais importante é a chamada teoria dos
campos conceituais, que ajuda a entender como as crianças constroem o seu
conhecimento. “Não podemos fazer uma teoria da aprendizagem da matemática
apenas com o cálculo numérico, por isso é necessário trabalhar com uma boa
noção epistemológica da matemática”, insiste Vergnaud, que esteve em Porto
Alegre a convite do Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e
Ação (GEEMPA) e, durante o encontro, concedeu a entrevista a seguir.
— Sonia Montaño.
Como foi sua convivência com Jean Piaget?
Tudo começou com um artigo que escrevi sobre a
utilização da teoria de Piaget para entender a estética da mímica. Então, ele
se interessou por meu trabalho, pois pensava que eu iria aplicar a teoria dele
ao teatro e à mímica. Depois, quando fui para a matemática, Piaget ficou um
pouco surpreso por essa mudança de direção. Ele me ajudou a entrar para o
Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), em Paris, e também me convidou
para estudar em Genebra durante dois anos. Aprendi muito com ele. Passei o
período em que escrevia minha tese com ele em Paris, em 1968, o ano da revolta
estudantil, e fui influenciado por muitas de suas ideias. Posteriormente me
afastei um pouco dessas ideias, em especial por estar interessado no processo
de ensino e aprendizagem da matemática. Piaget não estava muito interessado na
aprendizagem escolar. Ele era um generalista do conhecimento, muito importante,
é claro; porém, ainda que as suas teorias sejam utilizadas na educação, ele
mesmo não trabalhava com as contribuições da prática escolar.
Por que a matemática continua sendo um problema para boa parte dos alunos?
Porque a matemática é objetivamente difícil e
porque ela não é muito bem-ensinada, sobretudo no ensino médio. No ensino
fundamental, as crianças entendem suficientemente bem, mas no ensino médio há
um formalismo matemático com a álgebra, com teoremas geométricos que são muito
difíceis. As crianças não conseguem compreender esse “conhecimento puro”, pois
é um pouco estranho para elas.
O que os professores precisam saber para ensinar melhor a matemática?
Se os professores não têm visão ampla da
aprendizagem da matemática, eles tendem a ser muito rigorosos com as questões
formais, com as formulações dos problemas, e isso não ajuda os alunos. É
somente uma minoria que gosta mesmo desse saber. É importante chegar a
demonstrar que é um conhecimento útil, funcional. É o caso da proporção, por
exemplo, que utilizamos durante toda a vida e em todas as profissões.
Como o senhor explica a teoria dos campos conceituas e sua contribuição
para a construção do conhecimento das crianças na educação matemática?
A educação matemática tem lugar em certa sociedade,
em certa instituição e em certa sala de aula. Essas questões sociais não
modificam a natureza do conhecimento matemático por si, mas têm fortes
implicações na maneira como os professores encaram o ensino da matemática e a
própria matemática. As representações matemáticas dos alunos diferem das de
seus professores, assim como as representações entre os professores variam
bastante, de acordo com sua visão da matemática e da sociedade. As competências
e concepções dos alunos desenvolvem-se ao longo do tempo, através de
experiências com um grande número de situações, tanto dentro quanto fora da
escola. Em geral, quando defrontados com uma nova situação, eles usam o
conhecimento desenvolvido através de experiência em situações anteriores e
tentam adaptá-lo a essa nova situação. É preciso gerar provocações pelas quais
conduzir os alunos a descobrir novas relações e conceitos novos. A grande ideia
de Piaget era o construtivismo, ou seja, que as crianças têm necessidade de
tomar decisões cognitivas, de repensar questões que consideram evidentes. É
para isso que existe o professor. Portanto, a aquisição do conhecimento ocorre,
via de regra, por meio de situações e problemas com os quais o aluno tem alguma
familiaridade. O professor intervém como mediador e propõe situações, de modo a
desestabilizar um pouco os alunos para ajudá-los. Essa noção de “situação” é
uma questão propriamente de didática. Foi sobretudo a didática francesa que
desenvolveu essa ideia de situação, em especial Guy Brousseau, muito conhecido
também na América Latina.
O conceito de situação seria, portanto, essencial na teoria dos campos conceituais?
Um campo conceitual é um conjunto de situações cujo
domínio progressivo exige uma variedade de conceitos, procedimentos e
representações simbólicas em estreita conexão. Há problemas de subtração e
adição muito simples, mas há outras situações bem mais complicadas, em que os
alunos de 10, 12 ou mesmo de 15 anos continuam fracassando. Contudo, não
podemos elaborar uma teoria da aprendizagem da matemática apenas com o cálculo
numérico, por isso é necessário trabalhar com uma boa noção epistemológica da
matemática. A conceituação matemática fundamenta-se em uma série de objetos e
relações que não são apenas numéricas. Pensemos, por exemplo, nas situações de
proporção, que são muito importantes na matemática: nelas não há somente
números, há também relações entre grandezas de mesma natureza e de naturezas
diferentes, e tudo isso não é só puramente numérico.
Haveria, então, um profundo sentido social na matemática?
Sim. Piaget tinha certa tendência de reduzir o
desenvolvimento das crianças à lógica. E o desenvolvimento, na verdade, não
pode ser reduzido à lógica. Há problemas de conceituação específicos. A física
ou a geometria, por exemplo, não são redutíveis à lógica. É preciso levar a
sério o conteúdo humano, social, do conhecimento em cada disciplina, em cada
área, e também em cada profissão.
O senhor conhece boas experiências de aplicação da teoria em escolas na
França e no Brasil?
Sim, e também na Argentina, no Chile e na Bolívia.
A teoria tem resultados empíricos e passa muito pela observação dos professores
e dos alunos: sem isso, ela não se sustenta. É necessário saber observar o que
as crianças fazem, como elas se sentem em relação a esse saber. Desenvolvi a
ideia de que os jovens têm muito conhecimento matemático, mas não são capazes
de explicitá-lo, embora o utilizem em determinadas situações. Chamei a isso de
“conceitos em ação” e “teoremas em ação”. Trata-se de uma interpretação do que
a criança faz, são os conhecimentos utilizados por ela para lidar com as
situações. É a base conceitual implícita ou explícita que está por trás das
ações dos alunos ao lidar com as situações propostas.
Como é a relação de alunos e professores do ensino médio com a matemática?
É uma relação difícil. A matemática é a disciplina
que, ao mesmo tempo, encanta os alunos que gostam dela e afugenta muitos
outros. Além disso, os professores de matemática costumam ser pessoas que amam
a matemática e não entendem muito bem por que os alunos não a compreendem. É
muito difícil mudar a prática dos professores em sala de aula. Para mudá-la,
não se pode dizer ao professor “Você deve fazer desse jeito ou desse outro
jeito”. É preciso mudar a representação dos professores sobre a matemática, a
representação da psicologia do aluno, da aprendizagem, da atividade na prática
e nas situações reais. Isso envolve muito de psicologia.
É preciso gerar provocações pelas quais se possa conduzir os alunos a
descobrir novas relações e novos conceitos.
Essa desestabilização gerada por novas situações é mais difícil de
propor ao aluno adolescente, que já enfrenta diversos tipos de
desestabilizações?
A adolescência é um período bastante difícil. A
revolta contra a família, a sociedade e os professores é, por vezes, intensa.
Devemos fazer os adolescentes se interessarem pelo conhecimento, pelo saber.
Defendo um primeiro princípio: não há respostas para as questões que não
fazemos a nós mesmos. Se não se propõem problemas às crianças pelos quais elas
se interessem, não há nenhuma razão para aprender. Se a criança não se faz
aquela pergunta, a resposta não interessa para ela. O professor deve trabalhar
com um problema importante do cotidiano para que o aluno se interesse. Defendo
ainda um segundo princípio, que vem de Piaget: conhecimento é adaptação. Se não
desestabilizamos a criança, ela não vê razão para se adaptar.
Como isso deve ocorrer na prática?
Não se pode desestabilizar o tempo todo, pois deve
haver um equilíbrio entre estabilização e desestabilização. Estabilização
porque precisamos ter informações confiáveis, utilizáveis, sem precisar
refletir muito. E desestabilização porque precisamos aprender de novo e também
nos adaptar à nova situação. Confrontar os alunos com problemas novos é
essencial. Esse é um ato de mediação bastante delicado para o professor, ao
qual eu tento responder com a teoria dos campos conceituais. O desenvolvimento
é continuidade e ruptura, continuidade e descontinuidade. Na matemática, assim
como na física, há muita descontinuidade. Contudo, até mesmo na educação física
e nos esportes há descontinuidade. E na vida também, é claro.
O professor deve trabalhar com um problema importante do cotidiano para
fazer os alunos se interessarem por matemática.
Existe alguma cultura que se dá melhor com a matemática?
Não, esse não é um aspecto cultural. Pesquisas
internacionais demonstram que as competências matemáticas dos alunos são muito
variáveis. Por exemplo, no ensino médio, eles são melhores na Coreia do Sul, na
Rússia, na França, e não nos Estados Unidos. É uma velha tradição de ensino. Na
verdade, houve sistemas matemáticos chineses diferentes dos sistemas
ocidentais. E houve sistemas matemáticos indianos bastante complexos. Visitei
na Índia, por exemplo, observatórios astronômicos do século XVII mais
desenvolvidos do que os observatórios ocidentais. Hoje, porém, a preocupação de
aprender matemática e a dificuldade de ensiná-la está presente no mundo
inteiro. Encontramos alguns estudos nos quais chineses de 11 anos são melhores
em matemática que americanos de 14.
A que se deve isso?
Ao fato de que não se insistiu muito sobre certos
problemas, sobre certas questões da matemática nos Estados Unidos. Então, há
algumas surpresas nesse sentido. Por exemplo, descobriu-se que problemas de
proporção não são muito trabalhados ou estudados nesse país. Caso se proponha
um teste sobre esse assunto, os adolescentes ficam surpresos, então eles
fracassam.
O que o senhor diria a um professor do ensino médio que está começando a lecionar matemática e está um pouco decepcionado por não ser compreendido?
Há muito a fazer no ensino de todas as disciplinas
de maneira geral. Eu diria aos professores para que se aproximem de comunidades
universitárias de pesquisa e estabeleçam um contato com elas. Não aprendemos
sozinhos. As crianças não aprendem sozinhas, mas os adultos também não.
Essas realidades, muitas vezes, funcionam de modo isolado?
É verdade. Deve haver uma aproximação entre esses
campos; não se pode aceitar que eles fiquem separados. Porém, essa é uma tarefa
difícil. A prática profissional cotidiana e a pesquisa não são iguais. E isso
vale não só para os professores, mas também para os médicos, engenheiros,
trabalhadores do campo. As obrigações e responsabilidades da prática
profissional não são as mesmas da prática de pesquisa. Por outro lado, não é
porque esses dois campos são diferentes que não se deve tentar aproximá-los.
Ambos terão a ganhar se caminharem juntos.
Créditos da imagem:
Foto: Fredy Vieira/ divulgação
Julho/2012
Contribuições: Vanderley
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