Como construir a disciplina e o clima de paz na escola
Entender o objeto indisciplina e estabelecer um pacto entre alunos e professores conduz à paz
Há algum tempo, a indisciplina tem sido o assunto da vez nas escolas de vários países do mundo, inclusive nas instituições brasileiras. As queixas dos professores sempre recaem sobre o comportamento dos alunos, e há até pesquisa que indica a indisciplina como um dos principais fatores de desistência da profissão docente. Quem de nós nunca ouviu alguém comentar que os alunos de hoje estão muito mais difíceis do que os alunos de antigamente? Que o professor não tem mais o respeito que já teve em outros tempos?
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Foi justamente essa realidade que me levou a eleger a indisciplina como tema das minhas pesquisas, tanto no mestrado quanto no doutorado. Eu confesso que não era o tema que mais me cativava. Na verdade, a avaliação escolar me despertava mais interesse. Geralmente, quando os educadores partem para a pesquisa eles tendem a se debruçar sobre temas que afetam mais diretamente a rotina da escola, e foi isso que me fez optar por esse objeto chamado indisciplina.
Se, por um lado, há algumas décadas a indisciplina dos alunos tem se mantido no topo do ranking dos problemas mais desafiadores da educação, por outro há escolas que estão dando exemplo de como tornar o seu ambiente mais harmônico e de como estabelecer níveis toleráveis de indisciplina. De modo geral, as escolas que não padecem de problemas de indisciplina têm, quando menos, dois aspectos em comum: elas já enfrentaram sérias dificuldades relacionadas ao comportamento dos alunos e resolveram enfrentar a questão a partir da formação dos seus educadores. Os profissionais dessas escolas entenderam que seria necessário desnaturalizar o problema e, nesse sentido, a apropriação conceitual seria o primeiro caminho a ser seguido com vistas à superação da indisciplina. Os gestores e professores concluíram que deveriam entender o que estava acontecendo em seu contexto específico, mas que também deveriam levar em conta a necessidade de se criar um significado compartilhado do objeto indisciplina, a partir das pesquisas e da literatura disponíveis.
Eu tenho participado efetivamente nesses processos de reversão da realidade de várias maneiras. Diretamente na unidade educacional na qual sou diretor e, de maneira mais pontual, em outras escolas que solicitam a minha colaboração. Assim como aconteceu na escola em que eu sou diretor, em muitas outras a indisciplina já foi um dos maiores problemas enfrentados e em algumas delas o clima de paz se tornou uma realidade. Nessa caminhada de trabalho, pesquisa e discussão com outros educadores as perguntas que mais têm aparecido são:
Por que os alunos de hoje estão tão indisciplinados?
É possível resolver o problema da indisciplina na escola?
O que as escolas fizeram para acabar com os casos graves de indisciplina? Quais são os fatores que geram a indisciplina na escola?
Por que os professores perderam a autoridade?
Considerando essas questões eu pontuarei alguns aspectos que foram identificados na minha prática e em pesquisas que abordam a temática da indisciplina, e que ajudaram escolas a reverter a difícil situação na qual se encontravam frente ao problema. Isso nos permite dizer que é possível sim superar o estado de caos e construir a disciplina na escola, e não se trata de uma crise de otimismo pedagógico. A minha experiência profissional, a literatura e os resultados de muitas pesquisas atestam isso.
Para início de conversa
Um aspecto importante é que os educadores se preocuparam em entender o problema sobre o qual decidiram se debruçar, ou seja, eles começaram pela seguinte pergunta: o que é a indisciplina? Concluíram que é fundamental definir o objeto indisciplina e criar um significado compartilhado pelo coletivo da escola. Na maioria das vezes, a conclusão é que eles nunca fizeram uma coisa fundamental: deixar claro para si próprios e para o coletivo da escola o que é adisciplina. Reconhecem, portanto, que a dificuldade que enfrentavam com os alunos não era algo fortuito ou inexplicável. Disso resulta um dos maiores aprendizados desse processo: Para que não haja problemas sérios de indisciplina, é necessário que a escola se preocupe em construir a disciplina que deseja.
Tudo que vem depois de tornar a indisciplina um objeto de saber
Outra coisa tão importante quanto tornar a indisciplina um objeto de conhecimento é estabelecer o consenso pedagógico da natureza política da ordem a ser instituída na escola, já que a disciplina a ser construída pode seguir por dois caminhos bem distintos: o democrático e o autocrático. O primeiro prima pelo respeito e pela participação direta dos alunos e tem como produto do seu processo o consentimento. O segundo opta pela imposição das regras a partir do topo da hierarquia na escola, sem levar em consideração o desejo dos alunos e tem como exigência fundamental a obediência.
A experiência tem demonstrado de maneira eloquente que o caminho antidemocrático tem como marca principal o fracasso. Escolas que não compreendem a necessidade de considerar a participação dos alunos têm enveredado pela via da repressão e do disciplinamento. Apostam na punição cada vez mais severa dos desvios dos alunos, além de se transformarem em verdadeiras fortalezas, em que as grades simbolizam a separação e a restrição entre os que mandam e os que obedecem. Não é necessário dizer que o caos tem se aprofundado nessas escolas.
Em contrapartida, aquelas escolas que obtiveram êxito no processo de construção da cultura de paz foram aquelas que apostaram na participação dos alunos e da comunidade escolar. Essas escolas geralmente começam as mudanças repactuando as regras com os alunos a partir da revisão do seu regimento escolar. Para os educadores dessas escolas o primordial é construir uma ordem disciplinar na qual os alunos tomem parte, especialmente no plano da concepção do ambiente a ser partilhado por todos. Sobre isso, posso citar a experiência da escola Brasil Japão, localizada no bairro do Rio Pequeno, em São Paulo, em que a experiência democrática da atual gestão levou à retirada das grades em 2017. A escola que era repleta de grades interna e externamente tem dado um maravilhoso exemplo de como se resolver os conflitos e a indisciplina no seu interior. Nessa escola, como em muitas outras também, os seus profissionais chegaram à conclusão de que a lógica do disciplinamento – erro e punição – não deve ser mais importante do que discutir os direitos e os deveres de todos.
Os fatores do sucesso
As regras
Repactuar as regras com a participação dos alunos e da comunidade, começando dos direitos para depois tratar dos deveres, ainda que eles também sejam importantes. No entanto, começar discutindo os direitos é uma boa demonstração do que deve prevalecer quando se quer regular a boa relação entre todos. Este gesto sinaliza que a função da regra não se limita a restringir, mas garantir direitos também.
A coerência
Zelar pelo cumprimento das regras é tão importante quanto estabelecer o que deve e o que não deve ser feito. Nesse caso, há coisas que não devem ser feitas por todos da escola e não apenas pelos alunos. O uso do celular pode ser um bom exemplo, visto que ele é muito presente no cotidiano das pessoas e consequentemente nas escolas, o que tem levado alguns países a proibir o seu uso, como já fez também o Distrito Federal em 2008. Em que pese a controvérsia sobre o uso da tecnologia na sala de aula, não é o nosso objetivo abordar isso aqui, se o regimento escola proíbe o uso do celular em sala de aula não é plausível que os professores o façam. De igual modo, cabe a todos a responsabilidade de cuidar para que as regras sejam cumpridas. Nesse sentido, não é razoável que alguns professores exijam que os alunos não usem o celular em sala de aula e outros negligenciem isso. Na maioria das vezes são essas incoerências que inviabilizam a validade das regras no contexto escolar.
Os dispositivos de acompanhamento e solução de conflitos
Evidentemente não basta criar boas regras e nem considerar a participação dos alunos apenas no momento de elaboração delas. Estabelecer as maneiras de resolver os impasses e envolver os alunos nisso também é fundamental. Nesse sentido, as assembleias tem sido o caminho adotado. Quando há um conflito, ou alguma regra é desrespeitada, o coletivo diretamente envolvido deve se reunir e discutir a questão, seja no âmbito da sala de aula, seja no âmbito mais geral da escola. Apesar de ser trabalhoso e exigir tempo os resultados compensam o esforço.
A impessoalidade da regra
Parece redundante e óbvio falar em regra impessoal, mas entender isso é fundamental para o sucesso da construção da disciplina na escola. Afinal, nem toda obviedade é tão óbvia como parece ser, principalmente em uma organização plural como a escola. Nas escolas em que as regras não são claras, ou o desrespeito a elas é flagrante, os desfechos variam de acordo com as pessoas responsáveis em fazer a mediação e, principalmente com o humor dessas pessoas no momento da mediação. Em razão disso, na maior parte das vezes, pode haver incoerência entre o ato de indisciplina e a medida imposta ao autor. Ora o humor do mediador redunda em abrandamento, ora em punição muito severa.
Com as regras claras e impessoais e os conflitos sendo resolvidos coletivamente as idiossincrasias e as variações de humor perdem importância, porque quando os problemas são resolvidos coletivamente a contextualização do problema pode ser um fator importante, sem, no entanto, incorrer no risco da relativização em que a punição depende da sociabilidade e do carisma de quem cometeu o desrespeitou à regra.
Democracia e aprendizagem: os grandes fundamentos da cultura de paz na escola
Simplesmente tornar os alunos dóceis para que o trabalho pedagógico flua e o professor não padeça com a indisciplina em sala de aula não basta. O objetivo não é acalmar os alunos para que os profissionais da educação não adoeçam. O acesso ao conhecimento – bem cultural produzido social e historicamente pela humanidade e veiculado na escola – é a grande razão de existir dessa instituição e dos educadores. A ordem a ser instituída visa à garantia da aprendizagem e da boa convivência entre aqueles que fazem parte da escola. Afinal, a aprendizagem é um fator organizador da disciplina e não o contrário. Resulta disso o consenso construído pelos educadores que se apropriaram desse tema: a disciplina não é condição para a aprendizagem, é produto dela.
Algumas considerações
Ainda que a indisciplina seja um tema complexo, gerada por múltiplos fatores e considerada um grande problema em muitas escolas, outras tantas já incluíram essa discussão em suas pautas de formação, o que tem permitido contextos educativos mais harmônicos e mais exitosos quando se trata da aprendizagem dos alunos. Sobre esse tema há muitos estudos produzidos e a literatura também é vasta. No entanto, há algumas coisas importantes que estão dispersas e outras tantas sequer foram escritas. Isso necessariamente não será um problema se as respostas para os dilemas forem buscadas e/ou construídas coletivamente.
É importante também levar em conta que a indisciplina não é um mal a ser extirpado. A indisciplina é um fenômeno social importante e que está também dentro das escolas. Nesse sentido, ela deve ser vista como um indicador de que algo não vai bem dentro de um contexto específico. Isso significa que esse é um fenômeno que deve receber a devida atenção e deve ser encarado com o cuidado que ele merece inclusive na formação dos educadores.
Não se pretende, por outro lado, minimizar o problema da indisciplina dos alunos, tampouco atribuir toda a responsabilidade dela aos educadores. Os gestores e professores conhecem de perto a dificuldade em lidar com situações de indisciplina. Como já foi dito por Silvia Parrat-Dayan, pesquisadora do tema, “não é raro sentir-se impotente e esgotado diante de alunos que parecem teimar em quebrar as normas da escola, se confrontar com colegas, professores e funcionários e não se comportar”. A autora diz, também, que a maneira de enfrentar esse problema é através da gestão participativa.
A despeito de toda a complexidade que envolve a temática da indisciplina escolar, o caminho da democracia tem sido o mais promissor para as escolas que enfrentam essa realidade. Entender as causas das quebras das normas da escola é muito mais importante do que simplesmente punir os indisciplinados. Se a lógica de disciplinamento (erro/punição) surtisse algum efeito prático a indisciplina dos alunos não estaria em voga durante tantas décadas, e até ocupando lugar em romances, como é o caso de O Ateneu, de Raul Pompeia. Na escola, as diferenças institucionais entre professores, alunos e funcionários existem e devem ser valorizadas, mas isso não deve implicar em relações de desigualdades em que os direitos valem mais para alguns e os deveres para outros, geralmente para os mais vulneráveis no espaço de poder institucionalizado que são os alunos.
Por fim, é importante destacar que é possível construir a disciplina e a cultura de paz na escola e os estudos têm apontado isso. Contudo, a literatura não é suficiente para resolver os problemas disciplinares das escolas. Além de lançar mão dela é necessário entender o contexto no qual a indisciplina aparece ou está sendo produzida, a fim de construir a disciplina desejada, sem perder de vista que a garantia do direito de aprendizagem dos alunos leva a este objetivo e não o contrário. O acesso ao conhecimento deve ser visto como parte do processo democrático na escola e não apenas a participação nos momentos de escolha e de decisão. Se isso for devidamente compreendido teremos a máxima que deve ser observada por todas as escolas: não basta à escola ser democrática, ela deve promover a democracia.
Para saber mais
POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 16ª ed., São Paulo: Ática, 1996.
Claudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente, cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Indisciplina e Violência Escolar: dilemas e possibilidades.
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