A professora norte-americana Katherine Merseth quer mudar a maneira como os professores aprendem, para que eles possam ensinar de forma diferente
A professora norte-americana Katherine Merseth está em busca de casos. Ela e sua equipe já acompanharam as aflições, problemas e conquistas de professores em países como Chile, África do Sul e, mais recentemente, Brasil. Ao levantar e publicar as histórias de professores e seus desafios em sala de aula, Katherine expõe fracassos – mas também incríveis vitórias. “O maior elogio que posso receber de um professor é quando ele pega meu livro e diz: ‘Mas essa escola da qual você fala aqui parece com a minha escola’”, afirma. “Quando falamos nos desafios da Educação, há questões que são comuns a professores nos Estados Unidos, Alemanha ou Japão e que nos conectam aos estudantes”.
O livro “Desafios reais do Cotidiano Escolar Brasileiro: 22 dilemas vividos por diretores, coordenadores e professores em escolas de todo o Brasil” reúne relatos de professores e gestores sobre experiência em sala de aula e na organização escolar. Professora sênior da Escola de Educação da Universidade de Harvard, Katherine Merseth coordenou o trabalho que utilizou a metodologia da instituição norte-americana para levantar a discussão sobre os desafios enfrentados pelos educadores nas escolas brasileiras. Há casos de bullying, violência, questões étnico-raciais, tudo dentro da experiência de quem viveu o problema e foi buscar uma solução – com a ajuda dos colegas, gestores, alunos e da comunidade escolar.
Para Katherine, o estudo dos casos, com suas evidências, é uma forma de compartilhar experiências com professores em situações muito similares, ainda que separados por fronteiras estaduais e municipais. Da mesma maneira, poderia servir ainda para dar exemplos em sala de aula de como adotar competências socioemocionais, seguindo o que diz a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). “Os professores podem ler casos de outros professores que dão uma aula que envolve o aprendizado de competências socioemocionais. E, com isso, eles passam a entender melhor”, afirma. É muito mais fácil assimilar a experiência de alguém que passa pelas mesmas dificuldades e fala a mesma língua, garante a professora. “Precisamos de mais casos para que os formadores, os professores em início de carreira e os professores experientes possam assimilar essas competências”.
A dinâmica desse aprendizado também é um ponto muito importante. Com a implementação da Base, há uma discussão que toma corpo sobre como deve ser feita a formação dos professores. Katherine é enfática em sua posição. “A melhor maneira de um professor aprender é estudando um caso, não através de aula expositiva. Então precisamos registrar mais casos sobre aprendizado de colaboração, resolução de problemas, resiliência, pois essas são as habilidades que os alunos precisam. Eles não precisam de mais aulas sobre como conjugar verbos”.
Ainda que Katherine possa ter um olhar crítico para as demandas não atendidas em sala de aula, ela não se vê acima dos educadores que, diariamente, enfrentam os desafios de transpor as barreiras da desigualdade para oferecer conhecimento. Toda vez que ela tinha de se apresentar, não hesitava: "Eu sou uma professora". "É assim que eu me apresento às pessoas porque é o que eu sou".
Em sua passagem pelo Brasil, a convite do Instituto Península, Katherine Merseth conversou com NOVA ESCOLA sobre os dilemas dos professores, formação continuada e algumas observações para melhorar a Educação no país.
Em seus estudos sobre a experiência dos professores em sala de aula em países como Chile e África do Sul, você encontrou semelhanças com o cenário brasileiro?
No trabalho que fizemos no Chile, encontramos um diretor que tinha em sua escola de ensino médio alunos bolivianos e chilenos. Os bolivianos queriam comemorar o Dia da Independência na Bolívia, mesmo vivendo no Chile. Aqui no Brasil, registramos o caso de um professor que fala sobre os venezuelanos que cruzaram a fronteira e estão no Brasil. Em qual nível, as escolas dessas cidades de fronteira devem respeitar a cultura venezuelana é uma questão levantada por ele. Aqui estamos falando de assimilação da comunidades. Tivemos casos em que o problema não estava na escola, mas no entorno. Conversamos com Jefferson, um diretor de uma escola situada em uma comunidade no Rio de Janeiro. O dilema dele era decidir se, em certos dias, ele deveria manter a escola aberta ou fechá-la, sabendo que a escola estivesse fechada, as crianças voltariam para casa e estariam suscetíveis ao perigo nessa caminhada, além de ficarem sozinhas em casa, pois os pais trabalham. Mas há casos semelhantes na África do Sul se pensarmos em termos de diminuir a desigualdade, um desafio que pode ser visto em muitos lugares e culturas. Há um caso de um educador na favela de Sowetto que tenta educar crianças que não contam com apoio da família. E há casos semelhantes aqui no Brasil. Então há semelhanças e, claro, diferenças. E acho que essa é a coisa mais poderosa nesse trabalho.
Como a sra. espera que professores façam uso desses casos?
Eles podem conhecer e entender experiências vividas por outros professores, seja em Brasília, no Amazonas, no Rio de janeiro. Eles podem ler os casos e ver algo que pode servir para eles. O maior elogio por parte de um professor é quando ele pega meu livro e diz: “Esta escola parece com a minha escola” ou “Isso aconteceu comigo ontem”. Quando falamos nos desafios do ensino, há desafios que enfrentamos nos Estados Unidos, na Alemanha, no Japão. Existe uma questão que é comum conectando os professores aos estudantes.
Em seus estudos em outros países, a sra. se deparou com alguma solução que poderia ser usada em qualquer escola ou sempre há uma barreira local que torna isso impossível?
O contexto de uma escola, onde está localizada, quem são os alunos, como é a comunidade, se essa escola tem apoio do governo, qual a política pública para esse local, todas essas coisas vão variar bastante. Mas quando estou dentro da sala de aula, quando estou diante dos meus alunos, é um contrato entre eu e meus estudantes. Ensinar é um acordo entre duas pessoas, um que será o professor e outro que será o aluno. E isso é universal. Quanto mais pudermos ajudar os professores brasileiros a reconhecer os alunos que estão diante deles, a educação se tornará melhor. E isso considerando famílias, pais, governos, dadas todas as diferenças. O problema é que vemos uma ânsia enorme em vários países em copiar o que está sendo feito na Finlândia, Singapura, Japão ou Canadá. Algumas coisas vão funcionar, mas você não pode simplesmente pegar um modelo e colocar em prática, na esperança que os professores levem a ideia adiante.
No ano passado, tivemos a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Eu acho que o Brasil deu o primeiro passo ao aprovar a Base e isso é excelente. Todos agora têm um objetivo em comum e há um entendimento sobre o que deve ser ensinado. E poderá ajudar os professores a entender como dar sua aula de forma diferente. É um exemplo perfeito de boa política pública. Agora, se vai fracassar ou se será bem-sucedido vai depender de quão bem será implementada, como a maioria das políticas públicas.
A Base deixa claro que o ensino das disciplinas deve ser perpassado pelo ensino de competências socioemocionais. É claro que não existe receita de bolo, mas como trazer essa nova mentalidade para a sala de aula?
A melhor maneira de um professor aprender é estudando um caso, não através de uma aula expositiva. Precisamos registrar mais casos sobre o aprendizado de habilidades socioemocionais para que os formadores, os professores em início de carreira e os professores experientes possam assimilar esse ensino. Podem ser casos sobre colaboração, resolução de problemas e outras competências que os estudantes precisam desenvolver. É disso que eles precisam, não mais aulas sobre como conjugar verbos.
Então o que precisamos fazer é colocar os professores, durante a formação, no lugar do aluno em atividades colaborativas, para que saibam como dar essa aula depois aos seus alunos?
É isso mesmo. Professores ensinam do jeito que foram ensinados. Não deveria ser uma surpresa, portanto, que um professor que aprendeu através de aula expositiva, vá ensinar seus alunos com aulas expositivas. Se os professores forem ensinados com atividades, trabalho colaborativo, eles vão dar aulas com essas características a seus alunos. É por isso que precisamos mudar a prática de trabalho. Se continuarmos apenas com aulas expositivas, acabaremos nos concentrando na teoria e eles não estarão preparados para dar aula nesse novo formato. Então eles precisam ser ensinados em uma nova maneira, exatamente como você mencionou. Precisamos quebrar esse círculo.
E para quebrar esse círculo, a sra. acha que deveríamos primeiro atacar a formação dos professores que ainda estão na faculdade ou pegar aqueles que já são experientes?
Eu quero os dois. Esse processo vai depender de quantos novos professores são necessários no Brasil. Nos Estados Unidos, já contamos com um bom número e nosso esforço tem de ir para a formação continuada. Os professores experientes são mais difíceis de convencer porque eles querem entender o que é essa novidade, se isso significa mais trabalho. Outro ponto, além do fato de que professores ensinam do jeito que foram ensinados, é que quando você implementa mudanças em qualquer organização, governo, escola, negócio, há uma perda. Eu sou professora de Matemática e adoro esta equação: mudança = perda. Como seres humanos, não gostamos de perder coisas e, portanto, nós reagimos. Mesmo que estejamos mudando para algo melhor, seja nos negócios, na lei, na medicina, as pessoas vão resistir. Os professores não são exceção. “Não preciso disso. Eu sei como dar aula”.
Outro aspecto da mudança é que leva tempo. Não podemos mudar a prática em sala de aula do dia para a noite. Mas nós podemos começar. E eu defendo a tese de que se você não começar em algum lugar, você nunca vai mudar nada. E se você começar, será capaz de mostrar evidências. Será capaz de mostrar que há escolas com melhor desempenho, nas quais os estudantes estão se saindo melhor, estão mais engajados porque suas aulas são interessantes. Eles vão para a escola mais animados porque o professor está ensinando algo que querem aprender, em lugar de uma aula expositiva chata, cheia de teoria.
Como professora, a sra. acredita que essa mudança pode ganhar mais força se professores compartilharem boas práticas com os colegas?
Com certeza. Uma prática que funciona no Japão e que poderia ser adotada aqui chama-se estudo de lição (lesson study). Um grupo de professores que dá aula da mesma disciplina e do mesmo assunto trabalha junto para montar a melhor aula, digamos, de divisão de frações. Esse plano de aula é executado por um deles em sala de aula, enquanto os outros ficam no fundo da sala observando e fazendo anotações. Eles se reúnem outra vez e discutem o que não funcionou na classe e revisam o plano de aula. O plano é levado para os alunos novamente para ver se funciona. Depois de três ou quatro aulas práticas, nós temos um plano de aula muito bom. Os professores japoneses salvam esse plano. E na próxima vez que um professor tiver de ensinar divisão de frações, ele vai usar esse plano. Então, há colaboração, desenvolvimento da melhor maneira de dar esse conteúdo e o plano está baseado no contexto daquela escola, portanto ele é local. Isso é muito poderoso. E acho que isso poderia ser usado aqui no Brasil.
Na Base do Ensino Médio, há uma discussão neste momento de que uma parte do aprendizado poderia ser feita à distância para que os alunos tivessem acesso a mais conteúdo. O que a sra. acha da proposta?
Eu acho que o ensino híbrido pode funcionar. Não sou uma grande entusiasta de que tudo seja feito online. Eu acredito que precisamos ter o contato pessoal, isso é imprescindível, mas ter algum conteúdo online pode ser útil. Em alguns casos, pode ser positivo para o aluno assistir a uma mesma aula dada por outro professor. Mas como professora, eu preciso ver os seus olhos, preciso saber se você está entendendo, se está animado com o que estou ensinando.
Aqui no Brasil consideramos muito os testes, como o Pisa. E eu sei que a sra. não é muito afeita a testes.
Não sou mesmo.
Mas é preciso ter algum instrumento para medir se os alunos e as escolas estão indo bem. Que tipos de testes deveríamos ter, então?
Esse é um problema. Se você tem um padrão, você precisa ter uma maneira de medir se os estudantes estão atingindo esse padrão. Ter essa responsabilidade é uma coisa boa. Que tipo de testes vocês têm no Brasil?
Temos testes nacionais [faço uma breve explicação da Prova Brasil e do Enem] e consideramos muito os resultados do Pisa. Quando olhamos para o Pisa, a sensação é de que a educação brasileira está muito mal.
Tenham cuidado ao usar o Pisa. Xangai tem um dos melhores desempenhos no Pisa, mas eles testam apenas 20% dos seus alunos. Na cidade de Xangai há muitos alunos que são filhos de trabalhadores imigrantes que vieram de outros países para se estabelecer lá, mas eles não são testados. Quem faz o teste são apenas os melhores alunos, das melhores escolas.
Mas isso é trapacear.
Sim, eles trapaceiam. Por isso eu diria que é preciso ter cuidado ao olhar para o que é feito na Finlândia, em Singapura, porque você não está comparando sistemas semelhantes. No Brasil, vocês deveriam olhar para os resultados do Chile ou do México, talvez Colômbia. Mas isso não resolve o problema. Nós ainda não sabemos como testar, em larga escala, colaboração, resolução de problema ou como medir criatividade. Precisamos criar novas formas de avaliar as habilidades que são necessárias no século 21. Criatividade, colaboração, cooperação, resolução de problema. É nisso que deveríamos estar nos focando agora.
(toca o sino da escola)
Viu só? Está na hora de irmos para o próximo período. (risos).
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